"Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus."
O que lí dizia, em outra tradução ou percepção (citando este versículo), algo como "não há branco ou negro, não há homem ou mulher, somos todos iguais".
Pois bem, é uma expressão autêntica da mesma forma. Nada contra. Contudo proponho observarmos o contexto. O versículo se enquadra em uma discussão sobre a lei e sua validade, sob um preceito eclesiático, no capítulo 3 desta obra. Em resumo, não se enquadra à questão da homossexualidade, e sim sobre a evidência e benefício da fé para um povo numa determinada época.
Esse equívoco não se dá por escolaridade ou condição financeira. Está amalgamado a uma onda de fatores, mas sobretudo acontece por uma malévola modéstia social.
Explico.
Uma vez li um livro do Padre Daniel A. Helminiak, cujo título é o deste post. Marketing à parte, fiquei fascinado por suas teses, mas estuPefato ao ler sua bibliografia. Até então desconhecia que tantas pessoas já tinham tratado de elucidar tal questão, antes do Pe. Daniel.
Imagine, um século em que almejava estar mais próximo do estilo de vida dos Jetsons, quer ter a bíblia como argumento para "proibir" a homossexualidade... e desde 1950 já tinha gente tentando dizer que isto não faz o menor sentido: Sherwin Bailey, John Boswell, Willian Countryman e outros que também pesquisei um pouco. Sem falar de Freud, com sua interessante nova visão sobre a perversão.
Bárbaro não é?! Acreditamos que o mundo sempre foi menos moderno ou hospitaleiro antes de nossa época, mas estamos apenas vislumbrados.
Falarei um pouco deste novo mundo que Pe. Daniel me mostrou, com apoio de uma tradução seríssima da Bíblia dedicada ao Rei James da Inglaterra, considerada padrão.
Em Gênesis 19:1-11 temos a história de Sodoma. Há relevantes momentos:
"Onde estão os homens que entraram esta noite em tua casa? Conduze-o a nós para que os conheçamos" (...) "Suplico-vos , meus irmãos, que não cometais este crime." Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-las trarei (...) "Retira-te daí! - e acrecentaram: Eis um indivíduo que não passa de um estrangeiro, e se arvora em juiz! Verás como te havemos de tratar pior do que a eles. E empurrando Lot com violência, avançaram para quebrar a porta. (...) mas os dois anjos viajantes (...) feriram de cegueira os homens que estavam fora (...)".
Na Bíblia, "conhecer" às vezes significa "manter relações sexuais com". Esta é pedra fundamental para associar o pecado de Sodoma ao ato homogenital masculino. Para começar, o verbo "conhecer" aparece 943 vezes no Testamento hebreu, e em somente 10 a palavra tem sentido sexual,, incluindo a menção acima.
Acontece que não há maneira de certificar totalmente se o texto se refere aos atos homogenitais ou não. A única certeza parece ser que ESTE TEXTO DIZ RESPEITO AO ABUSO, E NÃO SIMPLESMENTE AO SEXO.
Forçar um homem a fazer sexo era uma forma de humilhá-lo. A idéia era de insultar os homens, tratando-os como mulheres, consideradas naturalmente inferiores até então, simples peças a serviço do homem. Daí, curiosamente, parametrizamos uma questão importante. Costumava ser mais aceitável ser o parceiro ativo, mas ser o receptivo significava desonra e degradação, uma clara objeção ao efeminado, e não ao fato de fazer sexo com outro homem.
Aliás, costumAVA ou costuma (tempo presente) ser assim? Boa pergunta, óbvia resposta.
Bom, voltando, uma regra básica da sociedade de Lot era oferecer hospitalidade aos viajantes. Esta mesma regra faz parte das culturas emitas e árabes. Lot recusou-se a expor seus convidados ao abuso pelos homens de Sodoma. Fazê-lo significaria, antes de tudo, violar a lei da sagrada hospitalidade.
Sim, isto é análise histórico-crítica. Mas ainda estamos acordando...
Ezequiel 16:48-49
"O crime da tua irmã Sodoma era este: opulência, glutoneria, indolência, ociosidade, eis como vivia ela (...)"
Sabedoria 19:13
"Porque tinham usado de uma inospitalidade mais detestável; pois se estes não tinham acolhido estrangeiros desconhecidos, os Egícios tinham reduzido à escravidão hóspedes benfeitores."
Mateus 10:5-15
"(...) Se não vos receberem e não ouvirem vossas palavras (...) em verdade vos digo: no dia do juízo haverá mais indulgência com Sodoma e Gomorra que com aquela cidade."
Pe. Helminiak elucida que outras passagens menos diretas a Sodoma listam injustiça, parcialidade, adultério, mentiras e encorajamento dos pecadores. Sendo o adultério o único pecado sexual da lista, então tido como utilização indevida da propriedade (esposa) de outro homem.
Em Levítico 18:22, temos a afirmação:
"Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação."
O Levítico condena à pena de morte também o adultério, incesto e bestialidade. Opor-se aos próprios pais significava ameaçar a ordem social. Em nossos termos este comportamento equivaleria à insurreição ou traição, puníveis com a morte. Na Israel antiga, mais do que uma ofensa pessoal, envolvia prejuízo financeiro: o homem havia pago ao sogro um dote por ela, e a mulher era importante para a expansão da família, para o enriquecimento de sua propriedade (procriação).
"Amaldiçoar" os pais e cometer adultério tinham significados diferentes da nossa cultura atual.
Praticar atos homogenitais significava ser como os gentios, era o equivalente a identificar-se com os não judeus. Isto quer dizer que a prática de atos homogenitais representava uma traição à religião judaica (Seção do Código Sagrado). Como povo "escolhido", não poderia estar associado a atividades pagãs, à idolatria e identidade gentia. Algo como os católicos que tinham de se identificar como católicos não comendo carne às sextas-feiras (antiga lei da Igreja), ou então cometeriam pecado MORTAL. Pois é.
Evidentemente, "abominável" aqui, é um mero sinônimo de impuro, como violação de regras de pureza que governavam a sociedade israelita e faziam o povo judeu diferenciado dos outros povos, possivelmente por princípios sanitários.
Enfim, o tabu social era transformado em pecado. E ainda é. Ora, sexo continua sujo ou impuro até para muitos heterossexuais.
A atitude da maioria das pessoas acerca da homossexualidade é ainda sentirem-se esquisitas a respeito, e afirmarem por reação que é errado.
Para os literais, basta ler algum livro destes autores iluminados que mencionei. Todos contém correlações entre palavras gregas, hebraicas e traduções adaptadas ou deturpadas. Neste caso, há uma análise belíssima para as palavras toevah e zimah, concluindo que a abominação é referida somente ao contexto do ritual violado, e o que a questão da "pureza" significava para o homem da época, como no caso da lepra, que somente quando se espalhava ao corpo inteiro (pasmem!) garantiam que uma pessoa não era mais impura (por tornar BRANCO o corpo inteiro).
E o mais interessante mesmo, é o seguinte. Certo, existem menções que podem ser interpretadas mais ou menos fanaticamente contra os gays. Mas... e contra as lésbicas?
Somente em Romanos 1:26 há uma menção ao que PODE ser o sexo entre mulheres, com sua seguinte afirmação de "anti-naturalidade". Mas não se pode afirmar que se refira certamente ao conceito de "relação" do texto como "sexo" entre mulheres.
E aqui vai a pergunta com a qual encerro com satisfação este post:
MAS QUE SENTIDO FARIA, SE APENAS AS ATIVIDADES MASCULINAS, E NÃO FEMININAS, FOSSEM CONDENADAS? QUE DEUS AÉTICO SERIA ESTE?
Não há sentido. Concordo plenamente.
Um comentário:
Muito interessante, inteligente, o texto. Li recentemente em outro blog (LARA LUNNA) algo sobre o livro do sacerdote Daniel, e penso que é importante a divulgação deste e outros escritos sobre o tema, bem como a reflexão arguta e arejada sobre o mesmo, num mundo onde a ignorância continua sendo sinônimo de cegueira e preconceito, muitas vezes. Abraços azuis.
Postar um comentário